Code Geass é o melhor e o pior do anime em uma só obra
Anime é o termo utilizado no Brasil para qualquer animação produzida nos estúdios japoneses, muitas vezes adaptadas dos mangás. Apesar de extremamente popular, e estar na boca da criançada, o termo ainda é muito genérico e acaba abrigando uma série de coisas diferentes.
As classificações dos animes podem ser feitas de inúmeras formas. Uma delas é a classificação por público-alvo, como crianças, meninas pré-adolescentes, meninos jovens, mulheres adultas, homens adultos. Combinadas a essas classificações, podemos falar dos gêneros propriamente ditos, como terror, drama, ficção científica, ação, etc.
Essas combinações criam verdadeiras fórmulas do sucesso. Exemplo disso é ver a grande quantidade de Shōnens (público-alvo de meninos jovens) no gênero de ação e aventura, com intermináveis cenas de luta, que fizeram sucesso no Brasil, como Dragon Ball, Cavaleiros do Zodíaco, Naruto, para citar apenas os mais populares. Aqui podemos ver também que a classificação por público-alvo não é restritiva, apenas indicativa. Conheço várias meninas da mesma idade que assistiam esses animes, e eu mesmo assistia vários animes “de menina”.
Dada essa pequena introdução, posso falar sobre Code Geass. De uns tempos para cá, estou assistindo de novo alguns animes que fizeram parte da minha adolescência, e dando um novo olhar para essas obras. Confesso que achei que ia sentir mais momentos de vergonha que de admiração, mas fui surpreendido positivamente. Um desses animes é o Code Geass.
Code Geass: Lelouch of the Rebelion uma série animada em 50 capítulos (2 temporadas de 25), exibida originalmente em 2006, e recentemente adicionada no catálogo do Netflix.
O enredo é um pouco complexo, mas em resumo se passa em um mundo onde o Japão foi conquistado e anexado a um poderoso império chamado Britannia e chamado de área 11. O protagonista, Lelouch, ganha um poder chamado Geass, que apenas olhando no olho, é capaz de dar uma ordem inquestionável, seja ela qual for. A partir disso, Lelouch lidera uma rebelião com o objetivo de derrubar Britannia e libertar o Japão.
A partir de agora, vou comentar os aspectos que constituem essa obra. Vai ter um pouco de spoiler.
Estilos e traços da animação
O desenho dos personagens de Code Geass foi criado pela CLAMP, grupo de mulheres responsáveis por outras obras como Sakura Card Captors. O estilo da animação é extremamente colorido, e a anatomia é bem distorcida. As pernas são grandes, e todo mundo é magro em um nível que não existe. Os olhos são grandes, os cabelos coloridos, e o rosto fino. É tudo bem característico, e dado o nível de capricho na animação, é fácil saber que essas fugas anatômicas e proporções exageradas são características de estilo, não falta de habilidade. Esse é um ponto que divide opiniões.
Knightmares e as cenas de luta
Muitos consideram o anime dentro do gênero Mecha (há controversas se mecha é um gênero, ou um recurso dentro de outros gêneros). Mas é evidente o destaque que existe dentro da obra para a presença dessas tecnologias e seus habilidosos pilotos. Inclusive em alguns momentos, o uso dessa tecnologia, suas modificações e avanços, são o que leva a história a outro patamar. Esse elemento também pode estimular o interesse do público, ou tornar o desenrolar do enredo extremamente cansativo e repetitivo. Eu particularmente considero a presença dos knightmares necessário, porque a partir dela o anime traz algumas reflexões sobre o uso de tecnologia de guerra, ética e dominação territorial. Isso não significa que eu não ache alguns momentos cansativos e repetitivos a respeito desse elemento.
Desenvolvimento de personagens
Com eu disse anteriormente, existem muitos personagens na trama. E honestamente, pouco tempo de tela para desenvolvê-los. A Shirley, por exemplo, que pode ser considerada uma das personagens principais, tem seus momentos de destaque, mas acaba sendo prejudicada por duas coisas. A primeira é que nunca está de fato consciente da trama total em que está envolvida, e segundo que a maior parte de suas ações é norteada e vinculada ao protagonista. Isso acaba enfraquecendo a sua presença na história, deixando-a inclusive fraca. Em muitos momentos ela parece que vai tomar um rumo, mas a verdade é que sua função na historia é ser a donzela em perigo. Esse desenvolvimento inacabado aparece em outros momentos. A Cornélia, por exemplo, foi uma das melhores personagens da primeira temporada, já na segunda praticamente desaparece.
O vilão desinteressado e desinteressante
Primeiro, não acredito que o vilão seja de fato Charles, mas o próprio Império da Britannia enquanto instituição e símbolo, mas sem dúvidas se existe algum personagem que personifica esse vilão, é Charles. Acho muito interessante a forma que é construída a imagem da mãe de Lelouch, como alguém que era vítima de uma trama, para ser desconstruída como parte da trama maligna.
O meu problema com o Charles é o mesmo problema que tenho com o vilão de Fullmetal. Personagens que ficam tão poderosos que só podem ser vencidos se 1)O protagonista tira poderes do cú. 2)Sua derrota é seu próprio poder. E honestamente, a segunda opção pode ser bem interessante, se bem desenvolvida, o que não foi o caso em Code Geass. Parece que tudo que foi construído para um clímax durante duas temporadas foi resolvido às pressas pois o tempo para encerrar estava acabando.
E talvez alguns conceitos trabalhados nessas cenas fogem ao meu conhecimento enquanto ocidental consumidor de um produto proveniente de outra cultura. Mas que conceito de Deus é esse, e o que significa matar Deus, nesse caso? O fato é que um personagem como Charles, que se desconectou totalmente da realidade física, acaba se tornando apático e chato de ver em tela.
O protagonista magnético
Uma coisa todo mundo tem que admitir: Lelouch é um dos melhores protagonistas que já vi. Primeiro, ele é um gênio, e totalmente imprevisível. Sabemos que ele tem um plano, mas nem sempre sabemos qual. Ficamos curiosos para saber qual o próximo passo, ou como ele vai escapar de determinada situação. E ele sempre dá um jeito.
No começo, eu achava muito conveniente do roteiro as vezes em que ele era salvo por outras pessoas, mas fui entendendo que esse é o maior poder de Lelouch, com ou sem Geass. Ele consegue dar ordens, convencer as pessoas a agir como ele quer, e literalmente manipular grupos para seus interesses. E o legal é que isso é feito de maneira nada romantizada. Ele paga o preço por agir como age, ele enfrenta dilemas morais para tomar decisões, ele tem escrúpulos.
Isso torna Lelouch um personagem bem mais interessante que o Raito/Light do Death Note, com quem é sempre comparado. Primeiro, porque a causa de Lelouch existe fora da sua cabeça, e existe no mundo prático. Segundo, porque enquanto Light é a personificação do egoísmo, Lelouch é altruísta e age pelo bem do próximo, mesmo quando está contra a vontade desse próximo.
Dessa forma, Lelouch consegue ser o centro, que atrai toda a trama ao redor de si, e consegue, seja como Lelouch, seja como Zero, estabelecer o cenário como o jogo irá se desenrolar.
As dicotomias
As dicotomias aparecem em conflito na história em diversas formas: Pai vs Filho, Britannia vs Japoneses (Elevens), Karen vs Suzaku (os melhores pilotos de exércitos inimigos, vida pessoal vs vida em batalha. Um dos pontos fortes do enredo é como essa dicotomias se apresentam. Em vários pontos, para manter as aparências, personagens que se odeiam, ou são inimigos em batalha, precisaram trabalhar juntos dentro do colégio. Da mesma forma, amigos do colégio aparecem em campo de batalha, preparados para se enfrentar até a morte. Isso traz para a história uma tensão em duas camadas, e a imprevisibilidade interna, de não sabermos se os personagens irão agir de acordo com seus sentimentos ou sua patente.
Os flashbacks
Mostrar o passado dos personagens também é uma forma bem interessante de trabalhar o enredo. Nesses momentos, entendemos como o rancor se estabeleceu dentro de quase todos os personagens, e porque suas motivações se tornaram tão fortes. A personagem da CC, por exemplo, se tornou mais interessante a cada flash que tínhamos de seu passado.
Os pontos de virada
Acredito que essa é a característica mais marcante de Code Geass. Seu enredo é bem imprevisível, e possui pontos de virada e caminhos inesperados quase o tempo todo. Nunca saber o que pode acontecer torna a experiência de assistir o anime muito legal, e estimula a curiosidade para continuar acompanhando.
O problema disso é que não é raro alguns desses momentos de virada forçarem a suspensão da descrença até não dar mais. Isso acontece com diversos outros animes, com a aparição de um plano infalível, com um personagem conseguindo manipular os outros com facilidade, com salvamentos da morte no último segundo, etc. Exemplo disso, como eu citei anteriormente são as vezes que Lelouch está para morrer, sendo salvo no último segundo por alguém, ou mesmo quando ele cria um plano de batalha totalmente imprevisível, que não só funciona, como salva seu exército ileso e aniquila o exército inimigo. Existem momentos em que a barra entorta, de tão forçada.
Além disso, o enredo começa confuso, e alguns momentos, mesmo com a história avançada, ainda são confusos para o espectador. Por um lado, é bom não se sentir subestimado pelo roteiro, por outro, isso deixa as coisas desnecessariamente cansativas.
De qualquer forma, acredito que o roteiro termina deixando poucas falhas, e a experiência toda é mais que válida. Acredito que essa é uma das séries de animação mais inventivas e subestimadas da década de 2000, que envelheceu bem. Além disso, não posso deixar de citar as críticas e metáforas apresentadas durante a história, que ainda se encontram bem atuais. As formas encontradas pelo enredo de discutir o imperialismo sozinhas já seriam motivo o suficiente para eu recomendar Code Geass. Mas o anime tem muito mais a oferecer.
Em resumo, abra seu Netflix, ou vá até a locadora mais próxima, e vá assistir essa maravilha da animação japonesa. E quem assistiu (possivelmente de tanto eu encher o saco), comenta aí se concordam ou discordam das minha análises. Ah, e quem quiser recomendar alguma obra de ficção para eu consumir e escrever a respeito, é só falar.