O discurso de Shingeki no Kyojin
Assim que foi finalizada a primeira parte da última temporada de Shingeki no Kyojin, não aguentei e fui acompanhar o mangá. Pra quem não sabe, Shingeki no Kyojin, ou Atack on Titan é um mangá criado por Hajime Isayama, publicado entre 2009 e 2021, mas que se popularizou após a adaptação para anime em 2013. Desde a primeira temporada, Shingeki no Kyojin se tornou um fenômeno pop gigantesco, não apenas no Japão, mas em todo o mundo.
Mais do que uma simples história para divertir, é possível perceber desde o começo que Isayama utiliza sua realidade fantástica para tratar de temas muito presentes em nosso mundo. Nas entrelinhas da história, é possível notar forte teor político, uma reflexão sobre a violência e a guerra, e sobre a condição humana em si. Nesse texto, gostaria de colocar meu ponto de vista e reflexões a respeito de algumas dessas discussões.
Arco político e a tortura
Enquanto nos arcos anteriores, os protagonistas lutavam por sua sobrevivência apenas contra os temidos titãs, no arco que ficou conhecido como arco político, os titãs quase não aparecem. Nesse momento, as intrigas se tornam bem mais nebulosas e os inimigos mais humanos.
Pela primeira vez, vemos a tropa de reconhecimento enfrentando inimigos humanos, e consequentemente matando gente. Durante esse arco, temos também uma faceta mais complexa e menos heroica dos protagonistas. Mais do que matar pessoas, eles se utilizam dos mesmos métodos questionáveis dos seus inimigos para conseguir seus objetivos. Exemplo disso é a difícil cena onde Hange tortura Djel Sannes.
Esse trecho da história foi a primeira vez que me questionei se o anime estaria trazendo o discurso de que, em determinadas situações, a tortura é uma possibilidade aceitável. Hoje, conhecendo a obra como um todo, acredito que Isayama esteja dizendo que em situações de guerra, instabilidade política e muito ódio, pessoas são levadas a cometer atos de violência e desumanização, mas não justifica essas ações. Fazendo isso, vemos que a obra apresenta personagens moralmente complexos e capazes de sujar as mãos. Dessa forma, apresenta o que acredito ser uma das mensagens mais presentes na obra: Na guerra, não existe um lado correto.
Ao mesmo tempo, existe um remorso de determinados personagens ao praticar essas ações. Nessa mesma temporada, existe uma cena em que Armin Arlert mata uma pessoa. Depois disso, o personagem fica até o fim da obra se culpando e por diversas vezes mostra-se preocupado com a moralidade do seu grupo e busca constantemente um caminho alternativo à violência.
Arco de Marley e Nazismo
O arco de Marley trouxe uma das maiores polêmicas em relação ao discurso de Shingeki: Seria Shingeki no Kyojin uma obra pró-nazismo?
O arco em questão começa a apresentar o mundo fora das muralhas de Paradis. No mundo da história, Marley é uma nação com forte poderio bélico e uma agressiva política imperialista de conquista de territórios. Dentro da sociedade de Marley, os Eldianos são uma etnia segregada e considerada inferior. Os Eldianos são levados a viver em guetos, se identificar com uma braçadeira e nunca são vistos como cidadãos plenos. Muitos elementos estéticos e narrativos deixam clara a metáfora para os horrores da Alemanha nazista e os judeus.
A polêmica começa a se dar quando Eren e a Divisão de Reconhecimento realizam um ataque à Libério, região da nação de Marley. Esse ato terrorista, que foi mostrado de maneira bastante chocante com nossos heróis matando militares e civis, levou os fãs a questionar essa aproximação dos dois lados. Eren diz para Reiner que eles são iguais. É como se o imperialismo Marleyano fosse justificável frente a seus inimigos.
Um olhar mais cuidadoso e mais alguns capítulos à frente parecem mudar um pouco essa perspectiva. A obra revela em diversos momentos a gênese do pensamento eugenista de Marley, e a forma como a narrativa de desumanização dos Eldianos se dá em diversos personagens desde criança. Os Guerreiros, que são crianças Eldianas treinadas para lutar ao lado do exército de Marley em troca de serem considerados cidadãos honorários, em um primeiro momento parecem representar um orgulho de servir Marley que incomoda quem assiste. Em um segundo momento, porém, esses mesmos guerreiros mostram a contradição de sua condição de defender uma nação que os rejeita de tantas formas diferentes.
Seria muito fácil retratar um grupo como simplesmente mau e outro como simplesmente bom em vez de retratar as contradições nas relações entre os dois grupos de forma mais complexa. A série deixa claro que grupo é opressor e possui um aparato tecnológico e poder bélico de Estado e que grupo é oprimido por ter menos acesso a informação, tecnologia e poder. É interessante notar como aqui, novamente, as pessoas não cometem atos de violência por serem simplesmente más, mas são motivadas pelas ideologias e contextos em que estão inseridas.
E a obra mostra a ideologia de Marley com suas mentiras, sua propaganda e seu potencial imperialista. Por outro lado, mostra também que a nação de Marley é formada em sua maioria por pessoas comuns, com sonhos, projetos e vontade de viver em paz. Assim, a obra abre espaço para pensar, e não dá todas as respostas prontas.
Zeke Yager, Armin Arlert e o sentido da vida
Próximo ao final da trama, além da presença de cada vez mais cenas de ação, temos também alguns diálogos que nos ajudam a compreender as decisões tomadas por diferentes personagens durante a história. Um desses exemplos é quando Zeke e Armin se encontram nos Caminhos.
Zeke apresenta seu ponto de vista em relação às origens e o sentido da vida. Dentro de sua teoria, a vida seria uma busca egoísta pela perpetuação da espécie em uma perspectiva bastante utilitarista, e o ser humano seria um mero instrumento de uma vontade superior de multiplicação. Dessa forma, Zeke enxerga a vida como um amontoado de sofrimento e acredita que quebrar o ciclo de reprodução e perpetuação da espécie seria uma forma de libertar a humanidade do sofrimento. Assim, qualquer sacrifício necessário para a realização de seu plano seria um mau necessário em nome de um bem maior.
Armin, por sua vez, não nega que a vida seja repleta de sofrimentos, mas não acha que esse seja o sentido da vida em si. Ele relata momentos de sua infância com os amigos e argumenta que nesses momentos sentiu como se estivesse vivo para estar naqueles momentos com os amigos. Para Armin, o sentido da vida está nos momentos de alegria compartilhados. E ele não está tão errado, afinal. Psicólogos afirmam que um dos fatores mais importantes para a felicidade humana são relações de qualidade.
Zeke se lembra dos seus momentos de alegria jogando baseball, e de alguma forma é convencido por Armin de que a vida é algo pelo qual vale a pena lutar, e que a humanidade merece continuar. Antes de morrer, Zeke observa como o dia estava bonito, e lamenta não ter prestado atenção nisso antes. Em seu último momento, parece ter entendido algo sobre como os pequenos momentos de beleza são tão preciosos como a vida em si.
Para mim, esse é um comentário da obra em relação ao sentido da vida, e de como uma vida de sofrimento faz a vida em si parecer uma experiência ruim e insignificante.
A estética militarista
Shingeki apresenta desde o começo uma estética militarista muito presente. Todos os personagens principais possuem treinamento militar e alguma patente no exército. Muito da estética, como uniformes, formação tática e linguagem são inspiradas no militarismo do mundo real.
Isso faz sentido no contexto da obra, e ajuda a guiar o espectador para os sentimentos que a obra busca cativar. Por outro lado, é possível sentir uma certa romantização do sacrifício da vida por um bem maior. Perder a vida para a conclusão de uma missão é o dia a dia dos soldados em Shingeki no Kyojin. A palavra de ordem é “entregue seus corações”, mostra que o objetivo coletivo de continuação da sobrevivência da humanidade e daquela sociedade é mais importante que vidas individuais.
De outro lado, a obra não deixa de mostrar o custo emocional e físico dessas escolhas. As mortes na série não são meras cenas chocantes, mas são retratadas e sentidas no choro dos familiares, na dificuldade dos colegas em dar a notícia e no desejo de quem sobrevive em honrar o sacrifício de quem morre. A morte toma um significado diferente, mas até o fim a obra deixa claro que a vida perdida, os sonhos e o futuro não são substituíveis e deixam uma ausência.
É interessante notar como em Shingeki, a guerra e a instituição militar serve para interesses mais políticos que sociais. Da mesma forma que no mundo real, os interesses imperialistas e a busca pela conquista de territórios serve ao propósito de beneficiar apenas alguns grupos privilegiados ao custo do sacrifício de muitas vidas. Os protagonistas estão em uma busca constante de viver em paz e alcançar uma vida melhor, mas a obra faz questão de retratar como em geral essa luta só traz perdas e traumas para todos os lados.
Existe também certo comentário sobre liberdade de escolha na guerra. As pessoas em Paradis tinham escolha a não ser lutar? Os Eldianos em Marley tinham outro meio de melhorar sua vida a não ser ingressar no exército de Marley?
O último arco e Eren vilão?
Na reta final de Shingeki no Kyojin, temos uma grande mudança no rumo da obra e no papel de quase todos os personagens. Eren Yager finalmente alcança o poder do Titã Fundador utiliza o Rugido da Terra, partindo em uma caminhada incessante rumo à extinção da humanidade fora da Ilha Paradis.
Nesse arco, vamos compreendendo uma série de coisas a respeito do passado, e de como Eren assume um papel determinista, onde acredita que todas as coisas deveriam ocorrer exatamente daquela forma para alcançar uma libertação do mundo da ira dos titãs. Na concepção dele, o poder dos titãs era um mau para a humanidade, e grande causador de destruição.
A escolha de Eren é indiscutivelmente uma escolha egoísta. Ele não é guiado por uma filosofia altruísta de ser um herói para a humanidade. As vidas de seus amigos e conterrâneos teriam um valor maior que qualquer outra vida fora de Paradis. Eren cumpre seu objetivo de libertar a ilha de qualquer investida inimiga, mesmo que isso custe mais vidas do que qualquer outra guerra na história do mangá.
A ideologia que guia as ações de Eren é muito próxima de uma vertente nacionalista étnico, muito utilizada em regimes autoritários e para justificar ações imperialistas. A justificativa de Eren de proteger sua terra natal e os habitantes de lá. Dessa forma, para proteger sua etnia, Eren deveria extinguir todos os diferentes, pois depois de todo o sofrimento, seu povo seria mais merecedor de sobreviver e habitar o mundo que qualquer outro. Nesse sentido, não acho exagero as comparações de Eren com o Nazismo.
Por mais estranho que tudo tenha parecido na primeira leitura, a conclusão da trajetória de Eren faz totalmente sentido com sua jornada. As promessas de vingança que ele fazia ainda criança são cumpridas. Ele nunca prometeu agir de maneira ética. Por outro lado, a forma que outros personagens reagem ao plano de Eren, e o enxergam como herói é bastante incômoda. Armin agradecer Eren por fazer o que fez é totalmente destoante da forma que ele foi construído até o momento.
Isso me leva a questionar o discurso da obra no final. O mundo que Eren deixou para o que restou da humanidade é um mundo de ainda mais traumas e destruição. Para livrar uma dor pessoal, ele causou uma dor coletiva muito maior. Eren é um grande vilão, mas não no ponto de vista dos protagonistas que sobraram. E justamente acompanhando esse final, fica-se uma impressão de que as ações de Eren foram heroicas.
Além disso, ao fazer alguns personagens mudarem de lado, a obra induz os leitores a aceitarem todos os erros do passado desses personagens, principalmente os que lutaram ao lado de Marley, como normais e perdoáveis. A obra acaba por nunca enfatizar a dor e sofrimento que ficou para trás. Em vez disso, escolhe focar no alívio e na esperança dos protagonistas por um mundo melhor.
A obra deixa muito espaço para interpretação e muita coisa apenas sugerida. Determinar exatamente o discurso do autor em cada parte é uma tarefa bastante complicada. Acredito que a Isayama deveria ter pontuado algumas coisas de maneira mais clara, e trabalhar mais o final. Apesar da obra longa, o final parecia pedir mais páginas para fechar melhor algumas portas abertas.
Sobre o que Shingeki fala, afinal?
E no fim, essa é uma questão sem ponto final. Isayama trabalha durante a obra toda com questões muito profundas. Questões profundas não tem respostas fáceis, e justamente por isso, acredito que o autor tenha escolhido deixar algumas respostas em aberto. Minha impressão é que ele se preocupa mais em trabalhar as motivações e ações dos personagens do que trazer um juízo de valor para as cenas.
De fato, existem ações que causam dor e destruição, e a Shingeki é bem claro ao demonstrar o quanto essas ações são problemáticas. O ciclo de violência e as políticas nacionalistas que colocam o outro como o inimigo são tema central da obra.
Ao terminar a obra, não tive uma sensação de justiça, mas um gosto amargo. Se o ciclo de violência em relação aos titãs foi quebrado, não foi sem um custo mais alto que o próprio ciclo que se propõe a quebrar. O mundo que vemos ao fim da obra não parece ser um mundo melhor. Ainda assim, Isayama parece dizer que a esperança é um caminho aberto para o diálogo e a diplomacia. No último capítulo, temos a impressão de que no fim das contas, somos todos pessoas amedrontadas lidando com nossos traumas e buscando uma vida melhor.