O filme Nós (Us) e o conceito de Sombra
Comecei a escrever esse texto na semana em que o filme estreou, e por falta de tempo, acabei abandonando para continuar agora. Isso significa que vários outros textos já foram publicados, o filme foi analisado por diversos pontos de vista, e eu não tenho mais a experiência do cinema tão fresca na minha cabeça. Ainda assim, quero falar um pouco das relações que encontrei entre o filme e o conceito de sombra presente nas obras de Carl Jung e seus discípulos.
Não tenho a intenção de fornecer uma explicação geral do filme, nem tratar de todas as referências e personagens do filme. Primeiro, eu só vi o filme uma vez e segundo, não tenho competência para isso, mas vamos lá.
O conceito de Sombra
Simplificando bastante, a sombra é o conjunto de características de nossa personalidade que buscamos esconder, contrário a tudo que temos como ideal de ser e nos manifestar para as pessoas. A definição do que é a sombra, portanto, depende do que o indivíduo possui como ideal e positivo, e o que o indivíduo não gosta em si mesmo, e quer esconder.
Em um contraponto, a sombra é também o aspecto mais primitivo da consciência, e mais ligado aos instintos. Dessa forma, a sombra pode ser importante para manifestar necessidades e questões mais profundas da nossa personalidade, que são negligenciadas no dia a dia. Quando “domada”, a sombra pode ajudar o indivíduo a se tornar mais criativo, espontâneo e expressar melhor suas questões mais íntimas perante a sociedade.
Ao mesmo tempo, a construção da sombra não dependem exclusivamente do indivíduo, uma vez que a própria formação psicológica do indivíduo corresponde a fatores biológicos e sociais. Dessa forma, a sombra carrega fatores externos que o indivíduo tem contato. É como explica Marie-Louise von Franz:
A sombra não é o todo da personalidade inconsciente: representa qualidades e atributos desconhecidos ou pouco conhecidos do ego — aspectos que pertencem sobretudo à esfera pessoal e que poderiam também ser conscientes. Sob certos ângulos a sombra pode, igualmente, consistir de fatores coletivos que brotam de uma fonte situada fora da vida pessoal do indivíduo. (O homem e seus símbolos)
Jason e Pluto
O primeiro conjunto de personagens que quero falar a respeito são as duas crianças mais novas. Acredito que dentre os “duplos” que aparecem no filme, a relação desses dois é a que tem uma conexão mais próxima.
Jason é um garoto tímido, com dificuldades de socialização. O menino está quase sempre escondido atrás da máscara. Eu não tenho o estudo necessário para diagnosticar, e acho que o filme não afirma com todas as letras, mas é possível que Jason tenha algum nível de transtorno do espectro autista. Além do que citei, outra característica que o menino apresenta que é frequentemente ligada à condição é a estereotipia motora, que o Jason apresenta ao manipular o esqueiro.
Já Pluto é apresentado como o menos humano dos acorrentados. Pluto anda em quatro patas, como um animal, parece agir mais por instinto e é fascinado por fogo.
Em diversas tradições religiosas, o animal é relacionado com o inconsciente humano em um estágio mais primitivo e menos desenvolvido, mais ligado aos instintos.
O motivo animal simboliza habitualmente a natureza primitiva e instintiva do homem. Mesmo os homens civilizados não desconhecem a violência dos seus impulsos instintivos e a sua impotência ante as emoções autônomas que irrompem do inconsciente. Esta é uma realidade ainda mais evidente nos homens primitivos, cuja consciência é menos desenvolvida e que estão menos bem equipados para suportar as tempestades emocionais. (O homem e seus símbolos)
Agora para ficar ainda mais confuso, vou citar o mito de Prometeu, o titã que roubou o fogo e entregou à humanidade. O fogo, no mito de Prometeu simboliza o desenvolvimento humano, o alcance de um novo patamar de consciência, a saída do estado primitivo.
Dessa forma, acredito que Jason, talvez por sua condição enquanto Autista, talvez simplesmente por ser criança, portanto naturalmente mais ligado aos instintos, tem uma conexão forte com sua sombra, e em vez de esconder-se dela, se relaciona com ela de maneira mais natural.
Já o fascínio pelo fogo representaria o desejo por um desenvolvimento psicológico e atingir um novo patamar de consciência. Finalmente, a máscara simbolizaria que por trás do que Jason mostra ao mundo, existe um potencial do que é seu verdadeiro Eu, escondido da sociedade.
A questão da projeção/comparação
Outra questão que para mim é bem explorada no filme é a questão da projeção. Mrs. Tyler, a personagem interpretada por Elisabeth Moss tem um dos diálogos mais marcantes para mim. Primeiro, ela sugere que Adelaide deveria fazer algumas cirurgias plásticas, projetando suas insatisfações com o próprio corpo na amiga. Em seguida, ela pergunta se Adelaide não gostaria de ter continuado na dança, e reflete como seria sua vida se tivesse continuado dançando.
Nessa cena, o tema da comparação é bem claro. Primeiro, Adelaide é levada a se comparar com a amiga. Outras comparações entre as famílias aparecem durante o filme, com uma competição quase sutil entre os barcos e as casas. Nesse aspecto, a comparação está bastante ligada ao consumo.
A outra comparação é entre o que a Adelaide é, e o que ela poderia ser. Acredito que essa é uma questão que atormenta todo mundo pelo menos uma vez na vida. Como seriam as coisas se eu tivesse ido por outro caminho? Será que estou aproveitando a vida da melhor maneira? Como diria Chorão: cada escolha, uma renúncia.
Lidando com o trauma
A terceira coisa que quero analisar é a própria personagem da Adelaide. Entregando logo o jogo, acredito que Adelaide representa é o trauma.
O trauma, novamente segundo Jung, pode levar ao desenvolvimento do chamado “complexo”. Complexo é uma estrutura psicológica desenvolvida pelo indivíduo que o leva a agir perante a determinadas situações de maneira inconsciente e quase autônoma. O complexo está ligado a um estado dissociativo, uma divisão entre o que você quer fazer e o que você faz. É como se você estivesse se acorrentando no porão do seu ser, e deixando outra pessoa tomar o controle.
A arte aparece como uma opção para lidar com o trauma, e expressar os sentimentos que você deixa trancado. Dessa forma, é através da dança que a Adelaide verdadeira consegue reunir forças para voltar a vir à tona, e se conecta com a sua versão da superfície.
Acredito que a televisão no início representa em algum nível todos os temas que trabalhei nesse texto. Primeiro, é uma fonte externa e coletiva, que pode afetar no desenvolvimento da sombra. Depois, está ligada diretamente às questões de projeção, que buscam o tempo todo gerar o desejo pelo consumo como forma de atingir outros status, e finalmente aparece como forma de elaborar o trauma. Prova da importância da televisão na construção da personalidade de Adelaide, é que a corrente que a Adelaide verdadeira faz no final, está diretamente ligada ao evento que ela viu quando criança na televisão. O ciclo se completa com ver, compreender e resinificar o evento externo.
O filme é aberto a muitas outras interpretações, mas esses foram meus 10 centavos de coisas que pensei enquanto assistia ao filme. A sessão de comentários está aberta para outas interpretações, assim como críticas ou complementos do que escrevi.