Walter Mercado é muito camp
Depois de receber recomendações de alguns lugares diferentes, fui assistir ao documentário Ligue Djá: O lendário Walter Mercado (Mucho, mucho amor: The legend of Walter Mercado, no original), que chegou em julho na Netflix. Como o nome sugere, o filme se dedica a falar sobre a trajetória de Walter Mercado, astrólogo porto-riquenho que se tornou mundialmente famoso apresentando programas de televisão sobre exoterismo e trazendo as previsões astrológicas para cada signo, e também por seu estilo e comportamento considerados extravagantes. O bordão que dá título ao filme no Brasil fez parte do imaginário de muitos brasileiros que viveram nos anos 90. Para se ter uma ideia, quando perguntei a algumas pessoas se sabiam quem era Walter Mercado recebi respostas negativas, mas quando perguntei sobre o bordão Ligue Djá, as pessoas respondiam rapidamente que sim, e já associavam ao que me referia.
O filme oscila entre apresentar a trajetória do astrólogo a partir de uma ordem temporal linear e a divisão entre temas polêmicos relacionados a ele. A marcação de cada capítulo do filme é representada por cartas do tarot, evocando ao filme a estética esotérica do tema trabalhado. Da mesma forma, durante das entrevistas, sobretudo as concedidas pelo próprio Walter Mercado, a câmera opta por mostrar os objetos e arquitetura da casa do entrevistado, quase como levando o espectador a um passeio por esse mundo.
Na primeira parte do documentário, temos o início da carreira de Walter Mercado como dançarino e ator de teatro e telenovelas em Porto Rico. Nessa parte, vemos como se deu sua estreia quase acidental como astrólogo em um programa da rede Telemundo. A partir disso, vemos a criação da persona do astrólogo da forma que ficou conhecido. A forma que o filme aborda esse passado argumenta por trás do astrólogo, existe um grande artista e um trabalho de criação de uma persona, que com o tempo passou a ser muito difícil de separar dele como pessoa.
Uma das discussões mais interessantes trazidas pelo filme é a forma como a sua figura desafia os conceitos enraizados de gênero. Quando começou a se apresentar na televisão como astrólogo em vez de ator, Mercado passou a adotar uma estética muito característica, com cabelo tingido, uso de maquiagem e acessórios, além de estar sempre trajando capas ornamentadas com cores fortes e cintilantes. E aqui não estamos falando de bijuterias, mas de roupas e acessórios criados por grandes nomes como Isaac Mizrahi e Versace. Além disso, seu gestual apropriado do seu passado na dança e usua oratória contribuíram para a criação de uma figura amplamente vista como andrógina. Arrisco ir um pouco além e dizer que muito dessa estética se enquadra no Camp, conceito criado por Susan Sontag lá em 1964, que é associado a uma extravagância anti-natural, e muito relacionado aos movimentos queer. Ao mesmo tempo, sempre que questionado a respeito do assunto, ele era evasivo, e nunca levantou bandeiras de gênero e sexualidade.
Esse visual e performance funcionaram muito bem na televisão, e no seu trabalho como astrólogo. Um dos pontos de interesse do filme foi a discussão de como uma figura assim ganhou destaque em uma sociedade tão machista e com valores cristãos como era a sociedade latino americana nos anos 90. Walter Mercado repesenta também uma característica muito presente no esoterismo da América Latina, com países predominantemente cristãos, que é um forte sincretismo religioso. Em vez de negar os valores cristãos, apropria-se deles em meio aos símbolos, ao mesmo tempo que se mistura aspectos de praticamente qualquer religião. Essa estratégia funciona como forma de fazer com que o público aceite o que está sendo apresentado como uma extensão de sua crança religiosa, e de alguma forma se sentir representado naqueles símbolos. Funcionou tão bem, que o resultado foi todo o fenômeno que o filme retrata. Outro aspecto que pode ter colaborado para sua popularidade é o fato dele nunca trazer palavras negativas. Seu discurso trazia sempre trazia um tom motivacional com frases como “não desista, essa fase difícil vai passar e você vai prosperar”. Caiu como uma luva em uma sociedade repleta de pessoas extremamente carentes de esperança.
A representação de Walter Mercado durante todo o documentário é bem positiva, chegando a soar em alguns momentos como um filme feito por fãs. Um exemplo disso é quando os diretores promovem um encontro entre Lin-Manuel Miranda (o cara do Hamilton) e o astrólogo. Essa cena pareceu uma forma do filme mostrar como Mercado foi uma figura muito importante para a infância porto-riquenha, mas pecou pelo excesso de bajulação. Já nos capítulos finais, o filme se dedica a discutir a batalha judicial entre Bill Bakula e Walter Mercado, e novamente adota uma postura favorável ao astrólogo. A posição dos documentaristas parece isentar Mercado de toda a culpa pela venda do serviço de vidência por telefone (o famoso Ligue Djá), que vendia uma consultoria astrológica mentorada por Walter Mercado, mas contava com um numero tão grande de “videntes” que a grande maioria nunca teve contato com o famoso astrólogo, nem possuia qualquer dom, curso ou conhecimento em astrologia. Ao apresentar essa situação, o documentário tenta convencer o espectador de que Mercado era completamente ingênuo em relação a isso e foi muito manipulado por Bakula.
Como é de se esperar, o documentário deixa de fora muitas partes importantes da trajetória de Mercado, como sua viagem para a Índia e seu encontro com o Rajneesh (Osho), guru cuja história insana é contada na série documental Wild Wild Contry, de 2018. Também fica de fora do documentário o recente falecimento de Walter Mercado. Não sei dizer se foi escolha dos produtores ou se o filme já estava finalizado quando ocorreu. Apesar de evitar tratar dos assuntos mais polêmicos, que poderiam construir uma imagem dúbia para o astrólogo, o tema do filme é interessante o suficiente para valer a pena assistir, principalmente para quem tem interesse em esoterismo e na criação dessas figuras midiáticas.